(Presidente do Google fala das lições de um (sic) IPO peculiar)
Eric Schmidt
Harvard Business Review. Maio 2010
O próprio presidente do Google escreve um artigo para a Harvard Business Review sobre a abertura de capital da empresa em 2004. Trata das desconfianças e dos problemas que rondaram a empresa durante o processo. Além do artigo, tratarei da Carta dos Fundadores divulgada no prospecto da IPO e outras informações relevantes.
A operação teve alguns pontos poucos usuais. Um foi a publicação – e inclusão no prospecto – da Carta dos Fundadores, escrita por Larry Page (também em nome de Sergey Brin) basicamente estabelecendo que a empresa não se renderia ao “padrão de companhia pública”. Um desses alegados padrões é o foco no curto prazo e os fundadores prometeram continuar o que faziam quando a empresa era fechada, focar na geração de valor a longo prazo. As decisões não se baseariam em tentar alcançar as expectativas de lucros dos analistas ou se guiariam por questões contábeis, e sim na geração de valor. Na palavra dos autores “se surgirem oportunidades que possam nos levar a sacrificar resultados no curto prazo,
mas que são do melhor interesse para os acionistas, nós pegaremos essa oportunidade” (itálico dos autores, negrito meu). Ainda, se surgir um projeto de alto risco e um elevado retorno que o justifique, esse projeto será aceito. Mais sobre isso ao final deste texto.
Além da Carta dos Fundadores, outras peculiaridades caracterizaram a oferta. A precificação das ações não seguiria os procedimentos comuns e o preço de lançamento seria definido por meio de leilão, de forma parecida que o Google usa para definir o valor dos anúncios. O propósito era evitar uma disparada nos preços das ações no primeiro dia, da óptica da empresa, evitar “deixar dinheiro na mesa”. Nenhuma empresa do porte do Google havia tomado tal medida e esse mecanismo não era muito bem entendido e menos ainda simpático para Wall Street.
Várias críticas foram feitas sobre esse sistema e outros aspectos da oferta, uma delas (citada no artigo) de Henry Blodget no Slate (Jogando no Google). Outra crítica foi uma reportagem da Business Week que considerava a IPO um tiro no escuro. O período de silêncio impedia a empresa de se manifestar. Uma entrevista de Brin e Page para a Playboy foi publicada, o que violava o período de silêncio (o que acabou sendo contornado, simplesmente incluindo a entrevista no prospecto).
A oferta prosseguiu e chegou ao leilão. As ofertas não foram muito altas e a empresa teve que estabelecer o preço de US$ 85,00, bem abaixo da faixa de preço inicial (US$ 106-135). Na estreia das ações, a abertura foi em US$ 100,00 e o fechamento em US$ 100,30, ou seja, uma valorização de exatos 18% no primeiro dia, o que os fundadores e o presidentes desejavam evitar. Com isso, o Google se tornava uma companhia aberta.
Hoje, a ação do Google vale US$ 475 com valor de mercado de por volta US$ 150 bilhões. Abaixo, o gráfico mensal da a abertura de capital até 26/05/10.
(Máximo: 747,24)
Os temores expressos nas críticas que a empresa recebia durante o processo de abertura de capital não se concretizaram. O Google não virou um novo Sillicon Graphics, não perdeu a sua cultura e não perdeu funcionários em massa.
Algumas questões que eu gostaria de tratar. O artigo fala pouco da estrutura acionária com duas ações, com a classe A (oferecida ao público) com direito a um voto e a classe B com direito a dez votos. Isso está relacionado à intenção de dar estabilidade à companhia e facilitar o foco no longo prazo. Serve também, segundo o Google, para proteger a empresa de uma tomada hostil de controle que pudesse pôr em risco a independência do Google. Isso é tratado com maiores detalhes no prospecto.
Existem vários casos de empresas com duas ações. No Brasil, isso é extremamente comum (ter ação ordinária e ações preferenciais no fundo é fazer o que o Google fez). Um caso mais semelhante ao do Google é o da Cosan, que criou a Cosan Limited, controladora da Cosan, com dois tipos de ações, uma com direito de um voto e outra com direito a dez votos. A diferença é que a empresa americana já começou assim, enquanto que a Cosan mudou as regras quando já empresa aberta.
Quanto ao foco no longo prazo, essa é uma atitude sensata e que não deveria ser, mas é corajosa. Como tratei anteriormente, o melhor interesse dos acionistas é levar em conta a geração de valor a longo prazo, não os resultados de curto prazo. E os fundadores do Google expressam isso na carta com rara felicidade. Apesar de começar a carta dizendo que a missão da empresa é servir aos consumidores, em diversas ocasiões os fundadores mostram comprometimento com o acionista, até porque eles são os maiores acionistas da companhia. E o que gera valor é tocar projetos de investimento que tenham valor presente líquido, cujos fluxos de caixa descontados a valor presente superem os investimentos iniciais. Aceitar projetos de alto risco e alto retorno (nas palavras de Page) é exatamente isso. Suavizar lucros para alcançar as previsões dos analistas e utilizar de artifícios contábeis ou tomar decisões de forma a ter retornos no curto prazo, às custas de retornos de longo prazo, não criam valor, pelo contrário.
Por fim, é interessante a leitura da Carta dos Fundadores, pela expressão coloquial do autor e, principalmente, por um domínio de conceitos econômicos (concorrência perfeita, mercados eficientes, valor ao acionista etc.) que muitos gestores não parecem dominar muito bem, mas que o engenheiro Larry Page parece conhecer bem.
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