Marfrig falha ao explicar mudança para IFRS
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Marfrig falha ao explicar mudança para IFRS


Os dados que a empresa de alimentos Marfrig mostra nas notas explicativas das demonstrações financeiras para explicar os efeitos da mudança para o padrão de contabilidade IFRS no seu patrimônio líquido não permitem que o leitor do balanço entenda as variações das contas do ativo da companhia. Com as informações disponíveis, pode-se questionar também o momento de registro de determinadas baixas contábeis, embora os lançamentos tenham sido feitos com aval da auditoria BDO Trevisan, adquirida neste ano pela KPMG.

A empresa divulga um ajuste positivo menor do que houve de fato no valor de seus ativos fixos, como prédios, máquinas equipamentos, e um ajuste negativo menor do que de foi verificado no estoque e nas contas a receber.

A explicação da Marfrig é que ela só precisava divulgar os ajustes que tiveram efeito no patrimônio líquido, mas não as reclassificações entre contas dentro do ativo. Segundo especialistas ouvidos pelo Valor, se as mudanças são relevantes, elas devem sim ser evidenciadas, independentemente de alterar ou não o patrimônio. Eles ressaltam, no entanto, que não se trata de um caso isolado, já que a o passo acelerado da adoção das novas normas - em apenas três anos - acabou deixando imperfeições pelo caminho. Para ficar no mesmo setor da Marfrig, a Minerva reapresentou espontaneamente em 30 de maio seu balanço de 2009 e 2010 com reclassificações entre contas do ativo e também na demonstração do fluxo de caixa, sem que isso tenha afetado seu patrimônio líquido ou resultado.

Problemas na reclassificação de contas do ativo não ocorreram apenas com a Marfrig; outras empresas também erraram

Partindo do pressuposto que os números do balanço patrimonial não estejam errados, já que devidamente auditados, há uma problema de informação sobre a migração para o IFRS, já que, com base nos ajustes citados na reconciliação apresentada pela empresa, o leitor do balanço não consegue chegar aos números que a empresa divulga no seu ativo. Essa lacuna surge porque a companhia divulga apenas as mudanças que tiveram efeito no patrimônio, mas não aquelas que ocorreram apenas entre contas do ativo, mesmo que relevantes.

As práticas contábeis da Marfrig têm sido contestadas há quase um mês pela Empiricus, empresa que se autointitula uma "casa de análise independente". A firma acusa a Marfrig de fraude no balanço. O frigorífico nega e alega que se trata de uma estratégia da Empiricus para ganhar com a queda das ações da companhia.

O Valor decidiu checar os pontos levantados e fez uma investigação própria sobre os números, contando também com a ajuda de quatro especialistas em contabilidade. A conclusão é que, no mínimo, as informações sobre a migração para o IFRS estão mal explicadas. O Valor identificou ainda aumento da inadimplência no terceiro trimestre sem que as provisões para perdas tivessem acompanhado esse crescimento - sendo esse um ponto de gestão e não contábil - e a contabilização inadequada das despesas com plano de opções de ações (embora o valor não seja relevante).

A data de transição para o IFRS completo no Brasil foi no início de 2009. Assim, os primeiros ajustes são feitos entre o balanço de fechamento de 31 de dezembro de 2008, no padrão antigo, e o balanço de abertura de 1º de janeiro de 2009, com o modelo contábil internacional completo. Essa foi a base de partida para a análise realizada.

Um dos lançamentos citados na reconciliação é de R$ 137 milhões, que é atribuído ao pronunciamento contábil CPC 25, que trata de provisões, passivos contingentes e ativos contingentes.

Esse lançamento, com impacto negativo no patrimônio, foi feito no ativo, do lado esquerdo do balanço, como uma provisão na conta de créditos tributários.

Isso significa que esses ativos eram contingentes, ou seja, não eram líquidos e certos para a companhia, e, portanto, não poderiam ser reconhecidos como um direito. A empresa explicou ao Valor que em 2008, quando fechou o balanço, acreditava ter direito a esses créditos. Posteriormente, quando teve informação sobre a glosa de ativos fiscais semelhantes no mercado, decidiu fazer a provisão, sendo, segundo ela, mais conservadora que as concorrentes nesse aspecto.

A regra contábil diz que, quando se tem uma informação nova após o fechamento do balanço, eventuais ajustes devem ser reconhecidos no exercício social em que ocorre a descoberta. Assim, de acordo com especialistas ouvidos pelo Valor, se a Marfrig ficou sabendo das glosas em 2009 ou 2010, deveria ter reconhecido a provisão contra o resultado de um desses anos, e não no balanço de abertura de 2008. Do modo como foi feito, o impacto do lançamento de R$ 137 milhões ocorreu diretamente no patrimônio líquido, sem passar pela conta de resultado e, consequentemente, sem afetar o lucro da companhia (embora outras provisões tenham sido constituídas nos anos seguintes).

Uma hipótese para se ajustar o balanço de abertura seria a companhia dizer que em 2008 já tinha as informações sobre as glosas, mas que a provisão não foi feita na época por conta de erro.

Na variação da conta de estoque, há uma mistura de dúvida sobre o valor do ajuste e sobre o momento de registro da baixa deveria ter sido feito. Na reconciliação apresentada na nota explicativa 31 do balanço anual, aparece um único lançamento ligado a essa conta, no valor negativo de R$ 97,3 milhões. A empresa diz que o ajuste seria por obsolescência, critério que já justificaria baixa do estoque mesmo na contabilidade antiga.

Além desse ajuste, ainda que o leitor do balanço suponha que parte do que antes entrava como estoque passou a ser classificada como ativo biológico na nova contabilidade (R$ 258 milhões), ainda sobra uma diferença próxima de R$ 100 milhões sem explicação na nota de reconciliação.

Sobre esse ponto, a companhia esclareceu ao Valor que foi feita uma reclassificação de alguns itens do estoque para o ativo imobilizado, que depois foram avaliados pelo custo atribuído (uma prática contábil do IFRS que permite a atualização do valor de ativos como prédios, máquinas e equipamentos uma única vez, apenas no balanço de abertura). Pela relevância da mudança, segundo especialistas, a divulgação sobre essa reclassificação deveria ter ocorrido.

Como contrapartida a essa queda do estoque, entra uma alta no ativo imobilizado. Como foi dito, a empresa decidiu adotar uma permissão da norma e atribuir novo custo para seu ativo fixo. O valor total dessa conta no balanço subiu de R$ 2,235 bilhões para R$ 3,313 bilhões, uma diferença positiva de R$ 1,345 bilhão. Na reconciliação, no entanto, aparece um efeito positivo de R$ 1,108 bilhão como consequência do novo custo do imobilizado. A diferença, diz a empresa, teria vindo dos estoques.

Outro ajuste que causa dúvidas na reconciliação é um lançamento negativo no ativo, com valor de R$ 154 milhões, que a empresa atribui ao CPC 37, que é o pronunciamento que detalha o que a empresa deve fazer ao adotar pela primeira vez o IFRS, e explica como sendo uma "baixa de títulos sem realização". Pela descrição, ele se parece com um "impairment" (redução ao valor recuperável), que deveria ter sido reconhecido já em 2008, ou contra o resultado do ano que em que se verificou a possibilidade de não realização desses ativos.

A Marfrig informou que, desse valor, um ajuste negativo de R$ 107 milhões foi feito na conta de clientes, por uniformização de práticas para se constituir provisões entre diversas empresas adquiridas, muitas delas de pequeno porte, sem controles internos rígidos. Segundo a companhia, o CPC 37 permite que os ajustes ocorram no balanço de abertura, para que as informações fiquem em bases comparáveis.

Nesse caso, conforme ouviu o Valor de especialistas, se de fato houve mudança de prática por conta de uniformização de modelos entre diversas empresas o ajuste poderia ser feito no balanço de abertura, com o devido esclarecimento. Em se tratando de um simples reconhecimento de uma inadimplência que já estava lá, o ajuste devia ser feito como correção de erro ou contra o resultado do exercício em que foi detectada a possibilidade de não recebimento.

Mas a queda na conta de clientes foi de quase R$ 195 milhões, para R$ 807 milhões. A companhia disse que a diferença para os R$ 107 milhões veio da reversão de "vendas para entrega futura" que não se concretizaram, o que não fica claro nas notas explicativas.

Ainda sobre prática contábil, o Valor identificou que as despesas com o plano de opção de ações de executivos são registradas no momento em que a pessoa passa a ter o direito de exercer a opção (chamado de "vesting"), e não na data da outorga, como determina a norma. A companhia reconheceu que a prática não é a prevista no IFRS, mas que por conta da baixa relevância dos lançamentos, de R$ 2 milhões em um ano, acabou não fazendo dessa forma no momento da transição.

Outro ponto que não está ligado a regras contábeis, mas sim à gestão, se refere às provisões para perdas com devedores duvidosos. A análise dos dados históricos mostra que em todos os trimestres a provisão para inadimplência da Marfrig sempre esteve em pelo menos 65% dos compromissos vencidos há mais de 90 dias, com uma média de 85% de cobertura desde junho de 2008. No terceiro trimestre de 2011, a inadimplência saltou de 5% para 11% da carteira de recebíveis e o índice de cobertura das provisões caiu de 100% para 47%, com uma diferença de R$ 84,7 milhões. A empresa informou que acha que o nível de provisão está adequado e que não há nenhum caso específico que justifique a elevação dessa proteção.

A KPMG foi procurada e falou com o Valor, mas não respondeu aos questionamentos específicos levantados sobre o balanço da Marfrig, com o argumento de que não pode falar sobre seus clientes. Por Fernando Torres
Fonte:Valor Econômico23/12/2011



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