Do homônimo capítulo 8 do livro "Lucro Sujo", escrito por Joseph Heath.
Nesse capítulo, o autor procura desmontar a falácia de que o lucro é imoral e a busca pelo lucro equivale a uma psicopatologia. Também, discute a alegada necessidade de haver empresas estatais para cuidar de “áreas estratégias”, categoria que pode ir da distribuição de água até a aviação comercial.
O autor aponta dois erros principais no debate da moralidade do lucro. A primeira é confundir interesse próprio com lucro. É mais uma vez a confusão gerada por tratar a empresa como uma pessoa física, apontada por Friedman. É tão absurdo dizer que uma empresa tem como interesse próprio o lucro quanto dizer que o interesse próprio do meu computador é trabalhar menos. O que é considerado o objetivo da empresa (ou objetivo da existência da empresa) por Jensen, maximizar o valor da empresa, encontra, na verdade, poucos defensores dentro da empresa. O interesse próprio dos altos administradores, a priori, não é de aumentar o valor da empresa, e sim seus salários, benefícios, mordomias e ainda se esforçar o mínimo para conseguir isso, procurando ainda minimizar o risco de ser demitido. Buscar a maximização do valor sem ter incentivos para isso e tendo que despender um grande esforço, de fato, seria uma atitude altruísta desse executivo.
Outro contexto é o dos escândalos corporativos, supostamente criados pela busca desenfreada pelo lucro. O que ocorreu, na prática, não foi uma busca por lucro, e sim um fraude que criou artificialmente lucros para que um certo grupo de pessoas ganhasse dinheiro. Esse certo grupo de pessoas não é o de acionistas, que perderam todo o capital investido, e sim os altos executivos das empresas que fizeram a fraude.
A segunda fonte de erros é a confusão entre “ganha dinheiro” e “lucro”. O autor aponta para a nulidade da frase “as corporações existem somente para maximizar os rendimentos de seus acionistas”. Segundo Jensen, gerar valor seria uma boa função objetiva. O problema da frase está no “somente”. Para que a empresa funcione, é necessária uma série de relações contratuais com stakeholders com os quais as empresas têm relações contratuais e sem os quais não poderia existir. Grosso modo, gerada a receita com relações contratuais com os clientes e subtraída a despesa com o pagamento de salários aos funcionários, pagamento aos fornecedores, pagamento de juros para os credores e pagamento de impostas, o que sobra é do acionista, se sobrar algo.
Os acionistas podem ser entendidos como demandantes residuais sobre os resultados da empresa e que possuem poder de controle na empresa. O poder de controle sobre a empresa, porém, é diferente de outros controles, por exemplo, o de uma pessoa sobre a sua própria casa. Um acionista de um banco (um banqueiro), principalmente minoritário, não pode simplesmente chegar em uma agência e exigir usar o computador para acessar dados bancários de uma pessoa, pular o balcão do caixa, entrar onde quiser ou ordenar que lhe busquem café (até pode, mas por ser cliente). O poder de controle que ele tem é da eleição dos diretores e de votação nas assembleias da empresa, proporcional à quantidade de ações que possui.
Heath compara a empresa com outras formas que a produção e o consumo poderiam ser organizadas. Ao invés de empresas, seria possível termos cooperativas. O exemplo dado é de uma cooperativa de produtores de leite: os produtores oferecem o leite para a cooperativa, que trata de vender. O resultado das vendas menos os custos do leite (abaixo de preços de mercado) gera um superávit que é distribuído entre os produtores de leite que contribuíram para a cooperativa. Seria possível fazer uma cooperativa de trabalhadores, de consumidores ou até de credores. Não só seria, mas cooperativas (com esse nome ou outro) são comuns. As bolsas de valores, antes de serem desmutualizadas, eram uma espécie de cooperativa de consumidores de seus produtos, de posse das corretoras de valores. Pode ocorrer dos bancos ou os funcionários tomarem o controle da empresa, em alternativa à falência. Organização em cooperativas possuem vantagens fiscais.
Então, por que não existem tantas cooperativas quanto existem empresas? Primeiro, seguindo o mesmo raciocínio, uma empresa é uma cooperativa de financiadores. Os acionistas “emprestam” dinheiro à empresa cobrando uma taxa de juros de 0%, tendo controle nas decisões da empresa e direito aos resultados residuais, exatamente como as cooperativas. Segundo, e respondendo à pergunta inicial, existem muitas empresas porque essa é a forma mais eficiente de organizar recursos e mediar conflitos entre seus constituintes. Cooperativas são tanto mais eficientes quanto mais homogêneos for o produto e seus constituintes. No exemplo acima, uma cooperativa de leite não poderia incluir produtores de queijo, porque isso criaria um conflito entre produtores de leite e produtores de queijo sobre como distribuir resultados e qual atividade priorizar. Incluo também que a cooperativa deveria ter uma limitação territorial, ou exporia a conflitos produtores de uma região mais eficiente contra produtores de uma região menos eficiente. Ou seja, a cooperativa não poderia se beneficiar nem de escala nem de escopo ampliado.
Existem conflitos entre acionistas, isso é claro. Mas todos os conflitos que existem são comuns às outras formas de organização, sem herdar outros conflitos. Isso porque os acionistas cooperam com um bem extremamente homogêneo, o dinheiro. Com isso, não há problema na distribuição: quem dá mais dinheiro, recebe mais dinheiro, e tudo que poderia ser exigido de um acionista é dinheiro; a mesma frase não poderia ser feita trocando “dinheiro” por “leite”. Os conflitos em relação às melhores estratégias da organização, sobre as decisões de investimento e distribuição de resultados e entre grandes e pequenos contribuintes existem entre acionistas, mas também entre outros tipos de constituintes de uma cooperativa.
Ou seja, empresa é só mais uma forma de organização da geração e distribuição de valor. E é a forma mais eficiente encontrada até agora.
Alguém poderia considerar tudo isso correto, mas argumentar que algumas atividades deveriam ser protegidas contra a exploração capitalista. Que são atividades essenciais e que empresas com objetivos “altruístas” deveriam cuidar dessas atividades. Empresas estatais, por exemplo. Repete-se o primeiro problema apontado acima. Será que administrar uma certa atividade de modo altruísta é objetivo da pessoa encarregada de administrar a empresa estatal? Que não se confunda “altruísmo” da organização com altruísmo das pessoas. Existe uma série de instituições com o altruísta objetivo de sugerir, discutir e aprovar (ou não) leis que visem aumentar o bem-estar da população. Essas instituições são as casas legislativas, incluindo o Senado Federal. Quantos julgam nossos legisladores altruístas?
Um outro problema de empresas estatais é que em muitos casos pode ser mais difícil de fazer com que essas empresas ajam de acordo com os interesses da população. Além de tais interesses serem definidos por políticos, há o problema dos incentivos. Existe pouco incentivo para produtividade nessas empresas já que, no mundo inteiro, incompetência é a última das razões para se demitir um administrador de organização pública.
Embora pareça surpreendente, é mais fácil para a sociedade manipular uma empresa. Se a sociedade deseja que uma atividade seja incentiva, crie-se incentivos governamentais para o lucro nessa atividade. Se a sociedade deseja que uma atividade seja coibida, diminua-se o lucro, talvez com impostos mais altos. Se a sociedade não deseja que uma atividade exista, faça-se uma lei proibindo-a. O problema são os intermediários entre o desejo majoritário da população e a execução desse desejo.
Um último pensamento meu, não do autor. Esse capítulo inteiro mostrou que discutir a organização sem pensar nas pessoas leva a erros. Um outro erro possível de se apontar é o de esquecer que acionistas também são pessoas. Mesmo que o acionista seja institucional, essa outra instituição, no fim, é possuída por pessoas. Como pessoa, o acionista é igual às outras perante a lei. E o lucro de uma empresa não some no vácuo, como às vezes parece que as pessoas pensam: vão para pessoas. Uma maior capacidade contributiva por parte dessas pessoas ou um desejo por distribuição de renda já leva a uma alíquota de impostos de 34% sobre o lucro líquido (25% de Imposto de Renda mais 9% de contribuição social). Há um incentivo para que as pessoas invistam na bolsa de valores e a participação das pessoas físicas no capital das empresas e no volume da bolsa está aumentando. Ou seja, nem o argumento de que o grupo chamado “acionistas” é composto apenas por ricos barões é aplicável.
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Pretendia que esse fosse o último texto sobre esse assunto antes de um texto resumindo as idéias expostas. Pretendo ainda ampliar a série com um texto discutindo idéias alternativas a essas e, talvez, textos sobre entidades sem fins lucrativos e sobre o papel do governo.