Marcas e Empresas
A polêmica causada por uma carta de gestão
A carta aos investidores de julho de uma gestora carioca causou polêmica. Ela sugere que algumas companhias vêm praticando práticas contábeis heterodoxas de forma a inflar seus resultados. Quais conclusões podem ser tiradas do episódio? O que ele pode nos ensinar?
A gestora Squadra Investimentos possui mais de três anos de operação. É formada por profissionais reconhecidos pelo mercado e seus fundos apresentam rentabilidade consistente. O Squadra Long-Biased FIC FIA acumula alta de 102,3% e o Squadra Long-Only FIC FIA valorizou-se 136,8% nesse período em comparação com uma apreciação de 3,1% do Ibovespa e 4,2% do Ibrx. Em julho, sua carta informa que a gestora estava apostando contra algumas companhias ao adotar uma posição de investimento conhecida como “short” (em que se alugam ações para, em seguida, vendê-las, com o intuito de recomprá-las mais a frente a um preço mais baixo).
Utilizo a carta, porque além de comentar sobre as práticas contábeis, ela permite abordar outros pontos interessantes como a relação gestoras versus corretoras e a tese de investimentos de companhias que buscam o crescimento por intermédio de aquisições.
Práticas contábeis
Os responsáveis pela carta dizem que já conseguiram identificar aqui no Brasil “manipulação” de resultados por parte de algumas companhias. De acordo com a gestora, o “´management` tenta fazer com que o lucro recorrente da empresa (...) pareça mais alto do que realmente é”. Mais a frente diz: “a criatividade das companhias brasileiras não se limitou ao mau tratamento do ´EBITDA`. Cada vez mais encontramos a figura do ´lucro ajustado`, presente nas divulgações de resultados das empresas. Em certas companhias, tais ajustes representam parcela significativa do que chamam de ´EBITDA ajustado` ou ´lucro ajustado`”.
A gestora complementa: “Em um dos casos avaliados pela Squadra, a diferença entre o ´EBITDA ajustado` reportado e o que foi passado como ´guidance` foi irrisória, por três anos seguidos. Para nós este é mais um indício de que a empresa pode estar ajustando seus resultados de modo a entregar o que prometeu”.
Cabem aqui algumas traduções do jargão de mercado. “Management” é a administração da companhia. EBITDA, sigla em inglês para lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização, é uma medida de geração de caixa. E, por fim, “guidance” significa a estimativa oficial da companhia para alguns itens como receita, EBITDA, margem ou investimentos para um determinado período, em geral um ano.
Em nenhum momento, a Squadra informa quais companhias estariam promovendo manipulação de resultados no seu entendimento. A reportagem do Valor de Ana Paula Ragazzi, do dia 5 de agosto de 2011, apurou que uma das companhias que o mercado associou ao texto seria a Anhanguera Educacional.
As ações de Anhanguera (AEDU3) caíram 28,5% desde a edição da carta, em 18 de julho até 22 de agosto, em comparação com a queda de 10,9% do Ibovespa no mesmo período.
Com base na associação feita pela reportagem e na má performance relativa das ações, resolvi analisar as demonstrações financeiras de Anhanguera.
Não acredito que a administração da Anhanguera esteja manipulando seus resultados de forma proposital, mas sim exagerando na classificação de alguns itens como não recorrente em seus informes de resultados. A companhia teve uma postura exemplar em termos de transparência ao utilizar cinco páginas (de um total de 30) do seu informe do segundo trimestre para detalhar as operações que julga serem não recorrentes. O resultado foi divulgado em 15 de agosto.
A Anhanguera informa dois lucros: o legal, que no segundo trimestre de 2011 atingiu R$ 8 milhões, e o ajustado, que perfez R$ 34milhões. Cabe aos analistas agora utilizarem o lucro que considerarem mais convenientes e adicionarem ou retirarem os itens que julgarem adequados.
A
tese de investimento da companhia é buscar o crescimento não só de forma orgânica, mas também por intermédio de aquisições. Assim, a companhia deve arcar com o bônus e o ônus de tal estratégia. O bônus é o vigoroso crescimento da receita decorrente de aquisições, incremento que não seria possível obter de forma célere organicamente. O ônus refere-se, entre outros, aos custos das transações (despesas com advogados, auditorias e comissões a empresas de consultoria e bancos de investimento), àqueles relacionados às rescisões, indenizações e aviso do corpo docente como parte da restruturação das unidades adquiridas.
Se a estratégia adotada é de continuar crescendo via compra de concorrentes, é discutível se aquelas despesas não são recorrentes. Cabe a cada investidor decidir tirá-las ou não de seus cálculos e projeções. Conversei com a companhia sobre esse ponto e eles insistem que tais itens devem ser excluídos para cálculo do lucro e EBITDA ajustado.
Também questiono a validade de colocar como não recorrentes algumas despesas com campanhas de marketing, como o lançamento da campanha do novo FIES (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior), programa do Ministério de Educação destinado a financiar a graduação de estudantes em 2010, e da ferramenta GoogleApps no segundo trimestre de 2011, pois sempre haverá programas dessa natureza.
Alguns analistas de mercado com quem conversei questionaram também a colocação das multas contratuais decorrentes de atraso de mensalidades adicionando ao EBITDA. Embora a forma mais conservadora seja alocá-las como receita financeira, não as incluindo no cálculo do EBITDA, considero o procedimento aceitável tendo em vista que elas são derivadas da atividade operacional da companhia.
Outra ponto que gostaria de destacar é que a companhia incluiu como outras receitas operacionais o ganho de capital derivado da venda de imóveis. Corretamente a companhia exclui esse dado do cálculo do EBITDA. Contudo, acredito que a classificação mais adequada seja alocar esse ganho como receita não operacional, o que facilitaria a análise do resultado da companhia. Analisando o estatuto social da companhia não encontrei nenhum item do objeto social que falasse em atividades imobiliárias. O mais próximo trata da administração de bens e negócios próprios. A maioria dos temas está relacionada à educação (oferecimento de cursos, edição de livros etc).
A Squadra poderia ter identificado as companhias que ela julga estarem adotando contabilidades agressivas ou criativas. É legítimo seu investimento em posições “short”. Contudo, ao não proceder assim, pode ter passado a sensação para alguns investidores de que tais práticas estariam disseminadas pelo mercado. Só recentemente o mercado acionário brasileiro vem chamando a atenção, principalmente de estrangeiros, logo colocações dessa natureza devem ser tratadas com cuidado.
Respondendo a pergunta do início do post sobre o que podemos aprender do episódio, primeiramente, vale lembrar, como comentado no post anterior ´A função do analista de ações`, que a análise tem que levar em conta várias abordagens: contábil, legal, estratégia empresarial.
Segundo, a revitalização do mercado acionário brasileiro é muito recente. O Novo Mercado da Bovespa possui apenas dez anos. O relançamento da bolsa ocorreu apenas em 2004 com a abertura do capital de Natura. Somente nos últimos anos a bolsa vem ganhando importância junto ao investidor estrangeiro. Assim, é importante que todos os agentes de mercado – gestores, companhias, bancos de investimento, corretoras – ajam com responsabilidade. Dessa forma, o mercado acionário brasileiro atingirá seu objetivo principal – proporcionar fonte de financiamento para as companhias - e não somente servir a alguns poucos.
Como o post já se encontra extenso, amanhã comentarei sobre os outros dois pontos: a relação entre corretoras versus gestoras e mais sobre a tese de investimento baseada em aquisições.
Até o próximo post. Valeu.André Rocha
Fonte:valor23/08/2011
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