Empresas sem dívidas
Marcas e Empresas

Empresas sem dívidas


Um dos tópicos de Finanças Corporativas é a estrutura de capital, um tema que vem sendo muito debatido principalmente depois de Modigliani e Miller (1958). A visão atual mais comum é a de que há uma estrutura de capital ótima que combina dívida e capital próprio de modo a igualar o benefício marginal da dívida (utilização de uma fonte com custo inferior) ao custo marginal (aumento no risco da empresa devido à possibilidade de inadimplência e falência).

É óbvio que isso não será cumprido à risca, já que é muito difícil de estimar qual seria a estrutura ótima. Porém, há alguns casos que são mais extremos, o de empresas sem qualquer dívida ou com uma alavancagem muito baixa. Diversos artigos examinaram essa questão e comentarei aqui dois. Strebulaev e Yang (2012) estudaram a estrutura de capital das empresas nos Estados Unidos, buscando determinar as características das empresas de alavancagem nula. No período de estudo, 1962-2009, o número médio de empresas sem dívida em determinado ano era de 10,2%, com mínimo de 4,3% e máximo de 19,9%. Analisando apenas dívidas de longo prazo, na média 15% das empresas não possuem tal endividamento, o que significa que 30% das empresas sem alavancagem de longo prazo possuem dívidas de curto prazo. Em média 21,5% das empresas possuem baixa alavancagem (inferior a 5% em termos de valores contábeis). Examinando a dívida líquida, em média 32% das empresas possuem dívida líquida igual ou inferior a 0*.

Para melhor entender esses fatos, os autores procuraram comparar as características dessas companhias com empresas similares. Para cada empresa sem alavancagem e com baixa alavancagem (dois tipos diferentes), os autores procuraram outras do mesmo setor, no mesmo status de pagamento de dividendo (pagam ou não pagam) e com tamanho similar (entre 0,5 e 2 vezes o tamanho da empresa em análise) restringindo a até quatro “proxies”. Note que estrutura de capital não é critério, de forma que empresas sem alavancagem também podem servir para comparações. O endividamento médio das empresas comparáveis é por volta de 20% em valores contábeis e de mercado, de forma que setor de atuação e tamanho não explicam isoladamente o fato de haver empresas sem dívidas. Empresas com alavancagem zero ou baixa possuem maior relação Preço/Valor Patrimonial, são mais lucrativas, possuem menos ativos tangíveis, pagam mais impostos e mais dividendos e retêm mais caixa.

Em seguida, os autores separam a amostra entre empresas que pagam dividendos e as que não pagam. Poderia ser o caso das empresas em crescimento (as que não pagam dividendos) não captarem dívida porque seria muito caro para esse tipo de empresa. Porém, continua havendo diferenças de alavancagem com as empresas comparáveis. Na comparação entre pagadoras e não pagadoras, de fato as que retêm mais dividendos são mais jovens, menores, gastam mais em P&D e são menos lucrativas. Empresas com alavancagem baixa ou nula continuam diferentes das com alavancagem em diversos dos aspectos citados no parágrafo anterior. Entre as que pagam dividendos, há uma grande diferença no pagamento de dividendos e recompra de ações em favor das empresas com baixa ou nula alavancagem. Porém, analisando todas as empresas, o pagamento de dividendos e recompra de ações é relativamente estável com mudanças na alavancagem, apesar de ser máximo nas empresas sem dívida. Dessa forma, é possível que as empresas escolham não se endividar e pagar mais dividendos ao invés de terem que reter dividendos e não contrair dívidas por receio de ter dificuldades financeiras no futuro.

Em regressões múltiplas, descobre-se que as empresas com baixa alavancagem são menores, possuem maior relação Preço/Valor Patrimonial, são mais lucrativas, possuem menos ativos tangíveis e pagam maiores dividendos, em linha com o que se descobriu até agora. Alavancagem zero é uma política permanente, já que é bem provável que uma empresa que não tinha dívidas em um ano continue assim no ano seguinte. Há alguma influência do setor, já que mais empresas de um setor com alavancagem zero aumenta a chance da empresa não ter dívidas. O uso de leasing operacional, não considerado dívida, não parece influenciar a decisão de ter pouco ou nada de dívidas. Passivos previdenciários em planos privados também não parecem fazer com que as empresas reduzam o endividamento, produzindo o efeito contrário (empresas com menos passivos previdências possuem maior propensão a ter baixa dívida).

Em seguida, os autores procuram estimar o quanto as empresas poderiam aumentar em seu valor de mercado se aumentassem a alavancagem. Como o pagamento de juros gera um benefício fiscal da dívida (a empresa paga menos imposto por ter obtido um lucro menor), os autores simulam o aumento no endividamento com o uso dos recursos para pagar dividendos ou recomprar ações, aproveitando-se do benefício fiscal da dívida. Restringindo ao máximo de 70% de alavancagem (segundo referências dos autores, alavancagem acima desse valor aumentaria muito o risco de crédito da empresa). As duas principais simulações são a de o que aconteceria se as empresas adotassem a estrutura de capital das proxies e a segunda caso adotassem a estrutura ótima, segundo os cálculos dos autores. No primeiro caso, para empresas com alavancagem baixa ou zero, o valor de mercado seria pouco menos de 8% maior em média para as empresas pagadoras de dividendos e por volta de 3% para as não pagadoras; no segundo caso, por volta de 16% para as pagadoras, por volta de 6,5% paras as não pagadoras.

Estudos anteriores (referenciados no artigo) mostram que a participação da dívida na estrutura de capital é baixa, 24,7% em valores de mercado no período 1987-2009. Porém, excluindo empresas sem dívida eleva a alavancagem média para 28,6% e excluindo as empresas com baixo endividamento a média passa para 36%, níveis mais compatíveis com o que se espera da teoria da estrutura de capital ótima.

Em outra parte do artigo, já foi sugerido que o comportamento das empresas era persistente, e os autores analisam mais profundamente a proporção de empresas que continuam com alavancagem zero ou baixa por anos consecutivos. Em 60,9% dos casos a empresa que tinha zero dívida manteve essa política no ano seguinte e em 30% dos casos a empresa manteve a política por 5 anos consecutivos. Outro resultado que já foi mencionado anteriormente é que o setor de atuação não explica esse comportamento, os autores mostrando que em vários setores há empresas com dívida nula ou baixa, isso sendo uma política generalizada e não havendo concentração em algumas indústrias, embora em algumas haja um número maior e em outras menor.

O último conjunto de análises é sobre se preferências do diretor-presidente ou a estrutura societária explicam o baixo endividamento. As estatísticas descritivas mostram uma relação positiva entre participação do presidente na empresa e o número de empresas com endividamento nulo ou baixo, o que se confirma nas análises multivariadas. A probabilidade a empresa adotar política conservadora de endividamento cai com o aumento de stock options garantidas ao presidente. Variáveis de governança como quantidade de conselheiros independentes, tamanho do mandato do presidente e conselhos maiores estão relacionadas com a política de endividamento, a má governança resultando em menor endividamento. Especificamente, conselhos menores e menos independentes favorecem a decisão do presidente de adotar uma política de estrutura de capital mais conservadora. Por fim, os autores analisaram se empresas familiares são mais propensas a não terem dívida ou manterem baixo endividamento, encontrando evidências de que isso ocorre apesar de limitações dos dados (aparentemente, controle familiar nãom é uma variável das bases de dados mais usadas, esse status tendo que ser determinado caso a caso).

O artigo de Strebulaev e Yang mostra que um bom número de empresas não utiliza dívida ou é pouco alavancada, relata as características das empresas associadas a esse comportamento, indica a perda de valor de mercado associada e mostra que a governança explica ao menos parcialmente o que leva a empresa a adotar essa política. Porém, os autores não analisaram se o baixo endividamento poderia ter a sua racionalidade econômica. Em versões anteriores do artigo, os autores analisaram o retorno dessas empresas. Lee e Moon (2011) analisaram essa questão corrigindo erros de versões anteriores do artigo já comentado.

Os autores analisaram empresas nos Estados Unidos entre 1989 e 2008, estudando o desempenho das ações das empresas que ficaram sucessivos anos sem dívida. Na base dos autores, 8,5% das empresas não teve dívida por três anos consecutivos e 5,1% por cinco anos, números diferentes de Strebulaev e Yang. Mas as características associadas a empresas com endividamento zero são basicamente as mesmas.

Os autores analisam o retorno anormal das ações utilizando o modelo de três fatores e de quatro fatores ponderando por valor de mercado as carteiras formadas por empresas sem dívidas por anos consecutivos. Encontram evidências de retorno anormal que, anualizado, vai de 4,26% a.a. a 10,06% a.a. a depender do modelo utilizado. Isso indica que esses modelos de precificação de ativos não capturam o efeito do conservadorismo da política de estrutura de capital de algumas empresas e que o conservadorismo financeiro (ou mesmo a própria alavancagem) são fatores importantes para determinar o retorno das ações. Pelo que se determinou nesse artigo e no anterior, empresas com endividamento baixo são mais rentáveis, gastam mais em P&D e possuem maior relação Preço/Valor Patrimonial, o que indica maiores oportunidades de crescimento. Os resultados indicam que o desempenho de mercado dessas empresas é bom, anômalo, pode-se dizer, e reforçam o que eu já imaginava, que o modelo de três fatores deveria mais explicitamente relacionar risco com retorno. O Valor Patrimonial/Preço, me parece, é um enlatado que inclui várias coisas como alavancagem e liquidez das ações, o melhor sendo “desenlatar” e considerar cada fator isoladamente.

* Sempre fui cético em relação à dívida líquida, e fiquei ainda mais depois de ver estudos sobre a relação negativa entre caixa e risco de crédito (ver aqui) antes de ajustes por endogeneidade. Ainda preciso escrever mais sobre isso. 



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